Prisão de dezasseis trabalhadores rurais do concelho de Serpa (1953)

FOI HÁ 70 ANOS. MAIO DE 1953 – LUTAS PELO TRABALHO E PELOS SALÁRIOS EM PIAS E NO CONCELHO DE SERPA

Em memória do meu pai ANTÓNIO BORGES PICA no dia do seu nascimento, a 6 de Agosto de 1924. Quando passam 70 anos sobre a primeira das suas 5 prisões políticas e o mesmo tempo sobre a grande luta dos trabalhadores rurais do concelho de Serpa, em Maio de 1953.

O mês de Maio de 1953 foi de grande intensidade e agitação social, com movimentações dos trabalhadores rurais do concelho de Serpa e grande parte da região alentejana, onde o trigo e a cevada eram as culturas dominantes na época de Verão. Em Pias assumiram particular dureza, devido à repressão e às prisões da PIDE.

10 DE MAIO – Apareceram pelas ruas de Pias pequenos panfletos escritos à mão. Encorajavam os trabalhadores rurais a lutar por 50 escudos de jorna para os homens e 35 escudos para as mulheres, no trabalho das ceifas. Os papéis foram espalhados de noite, pelas ruas e Praças de Jorna. Em Pias eram duas as principais Praças de Jorna, uma no largo da Torre do Relógio, a outra no cruzamento da estrada para Moura e Brinches, no sítio d’As Pontes’, onde hoje se cruzam as ruas Dr. António Sérgio e rua de Brinches. A GNR apreendeu 56 exemplares e enviou 4 para a Direcção da PIDE, em Lisboa.

13 DE MAIO – A PIDE já se encontra em Pias, no Posto da GNR. Ao Posto é chamado o trabalhador rural ACC, de vinte e dois anos de idade, que presta as seguintes declarações à PIDE:

«Que no dia 10 pelas 15 horas, foi abordado na Rua da França, desta localidade, por um indivíduo de nome António Pica, que o convidou a comparecer no Monte dos Lagares-Penedo d’Abruta, herdade do Doutor Pereira, afim de ali assistir a uma reunião de trabalhadores rurais. Que compareceu, pelas 16 horas do dia dez, no referido local com o fim de assistir à aludida reunião, na qual falaram os seguintes indivíduos – Bento dos Santos, rural; António Pica, rural; Manuel Vicente Estrela, rural; e um outro conhecido pela alcunha “O Caga ninhos” rural; todos residentes nesta freguesia de Pias, os quais trataram das reivindicações de salários durante as ceifas, tendo ficado assemte entre todos que ninguém se apresentaria ao trabalho das ceifas do trigo sem que fossem remunerados com cincoenta escudos diários. Que à citada reunião assistiram cerca de cincoenta trabalhadores rurais

13 DE MAIO – Um relatório da PIDE com origem no Posto fronteiriço de Ficalho confirma a denúncia feita no Posto da GNR de Pias, de que nas localidades de Pias, Vale de Vargo e Aldeia Nova de S. Bento, haviam sido encontrados «panfletos de carácter subversivo» que incitavam os trabalhadores rurais à luta por melhores salários.

15 DE MAIO – A PIDE COMEÇA A FAZER PRISÕES EM PIAS.

Às 10h30 da manhã, o agente da PIDE Henrique Videira Rodrigues vai a nossa casa na Rua do Castelo prender o meu pai. O meu pai tinha 27 anos de idade, era trabalhador rural, estava em casa porque não tinha trabalho. Com ele estava a minha mãe, Mariana do Serro Carmona, e os meu dois irmãos mais velhos, o António de 4 anos e o Francisco de 2 anos. A justificação da prisão foi «suspeita de ser “membro da associação secreta e subversiva que denominam por partido comunista português”».

Às 11h00 é preso também em sua casa António Joaquim Cardoso, de 26 anos de idade, solteiro, trabalhador rural, natural de Moura mas residente em Pias, na Rua da Chaminé de Cima. Às 11h30 é também preso na sua casa, Bento Rosa Martins, trabalhador rural de 29 anos de idade, solteiro, natural e residente na freguesia de Pias, na Rua do Castelo. A acusação dos dois é idêntica à de meu pai.

16 DE MAIO – Os três presos já se encontram em Lisboa, encarcerados na Cadeia do Aljube às ordens da PIDE.

18 DE MAIO – O primeiro a ser interrogado é o meu pai, pelos agentes da PIDE Inspector Raul Porto Duarte, Chefe de Brigada Carlos Casaca Velez e o agente Augusto de Sousa Maia.

É intimado a responder «desde quando faz parte da organização secreta e subversiva que denominam por “partido comunista português”, quando e por quem foi “aliciado” para o mesmo “partido”, qual a “imprensa” editada pela referida organização comunista que recebia e que “cotização” pagava». Ao que o meu pai respondeu: «Que nunca fez parte do “partido comunista português” e consequentemente nunca recebeu nem pagou qualquer “imprensa” partidária. E mais não respondeu» após o que seguiu para o Aljube.

22 DE MAIO – No Alentejo prosseguem as lutas dos trabalhadores rurais e a PIDE e os seus informadores não cessam de enviar relatórios para Lisboa. Da fronteira de S. Leonardo, concelho de Mourão, segue uma informação referente à região de «Moura – Serpa e Pias – principalmente nesta última localidade, os trabalhadores rurais, encabeçados por mulheres, negam-se a trabalhar por menos de 65$00 diários».

Também em Aldeia Nova de S. Bento e no mesmo dia, o latifundiário Capitão de Exército, Alcino Júlio Pires, envia um exemplar do jornal “O Camponês” datado de Maio de 1953, o qual está apenso ao processo político do meu pai. O jornal refere que as condições previamente propostas aos trabalhadores rurais para o trabalho das ceifas, haviam sido bem acolhidas pelos trabalhadores rurais e alude a grandes reuniões realizadas para discussão e aprovação das mesmas. Nestas reuniões haviam sido formadas ‘Comissões de Unidade’, com o fim de combinar as jornas a exigir na primeira semana das ceifas.

15 DE JUNHO – O meu pai é levado de novo aos interrogatórios.

No ‘Auto de Perguntas’ sobre quem o encarregou de convidar ACC a assistir à reunião de trabalhadores rurais que teve lugar no Monte dos Lagares e qual o fim da citada reunião, negou ter convidado tal indivíduo «nem por sua iniciativa, nem por ter sido encarregado. Conhece-o bem, mas não teve com ele qualquer conversa nesse sentido. Não tem conhecimento de que se haja realizado qualquer reunião de trabalhadores rurais. […] Consigo ninguém usou da palavra, visto que não assistiu à reunião a que os autos de referem. […] Não faz parte, nem nunca fez, da organização em referência.»

Após o interrogatório é levado para o Aljube e lá passará o dia de aniversário, a 6 de Agosto. 

13 AGOSTO – Prestes a atingir o ‘limite legal’ de três meses de prisão sem culpa formada, a PIDE pede a prorrogação por mais 45 dias para apuramento da sua responsabilidade no processo das lutas de Maio, o que consegue.

3 DE SETEMBRO – O meu pai é internado na enfermaria da Cadeia do Aljube tendo lá permanecido por quinze dias, resultante da grande violência, física e psicológica usadas pela PIDE.

11 DE SETEMBRO – Ainda durante o seu internamento na enfermaria do Aljube, é chamado a novo interrogatório.

As perguntas eram as mesmas desde o primeiro interrogatório, a 16 de Maio de 1953. A polícia insistia, procurava contradições, voltava a formular sempre as repetidas perguntas.

As respostas foram sempre as mesmas, negar. Negar, negar sempre tudo à polícia, não fazer declarações ou sequer confirmações, contar sempre a mesma história procurando não cair em contradição. Eram formas de defesa e resistência, frente à brutalidade dos interrogatórios da polícia.

Quando a PIDE elabora o relatório final sobre as lutas no concelho de Serpa, já tinham passado cinco meses que 16 homens do concelho de Serpa estavam presos sem culpa formada nem julgamento. Pode ler-se no relatório, designadamente:

«Em Maio do ano em curso, foram espalhados, nas freguesias de Pias e Aldeia Nova de S. Bento, panfletos de caracter subversivo, incitando os trabalhadores rurais a recusarem-se a trabalhar nas ceifas, sem que lhes fosse garantido o salário de cinquenta escudos diários. Isto provocou uma efervescência entre os trabalhadores rurais, que estes efectuaram algumas reuniões para se organizarem de modo a conseguirem o que aqueles panfletos impunham.

Estes factos deram origem aos presentes autos e à prisão dos nacionais abaixo mencionados, a quem se atribuíram suspeitas de obedecerem a ordens emanadas da organização secreta e subversiva que usa a designação de Partido Comunista Português:

ANTÓNIO BORGES PICA – PIAS
ANTÓNIO JOAQUIM CARDOSO “O Caga Ninhos” – PIAS
BENTO ROSA MARTINS “O Bento dos Santos” – PIAS
FRANCISCO FILIPE CHORÃO “O Francisco Carrasco” – ALDEIA NOVA DE S. BENTO
ANTÓNIO MOIRALINHO – ALDEIA NOVA DE S. BENTO
PEDRO RODRIGUES MONGE – ALDEIA NOVA DE S. BENTO
BENTO ANTÓNIO VENÂNCIO “O Bento Coelho” – ALDEIA NOVA DE S. BENTO
ANTÓNIO JOAQUIM GUERREIRO “O Pintalhaço” – A-DO PINTO
LUÍS BAIÃO ou LUÍS CARVÃO – PIAS
MANUEL JOSÉ JANEIRO FERREIRA “O Manuel Pequenino” – PIAS
ADOLFO BARBOSA BEXIGA “O Carolo” – PIAS
FERNANDO DOS SANTOS JOSÉ “O Fanina” – PIAS
ANTÓNIO MORIÉS PICA – ALDEIA NOVA DE S. BENTO
MÁRIO JOSÉ VALENTE ou MÁRIO MADEIRA – A. DO PINTO
RAFAEL RODRIGUES QUARESMA – ALDEIA NOVA DE S. BENTO
DOMINGOS MACHADO VALENTE  – A-DO PINTO.

Em seguida, o relatório menciona que, relativamente a António Borges Pica, António Joaquim Cardoso e Bento Rosa Martins «estes três arguidos, apesar de bastante instados, negam as acusações».

O meu pai, o Bento dos Santos e o António J. Cardoso foram libertados a 29 de Setembro de 1953.

Por Rosalina Carmona, investigadora

Fontes:
Arquivo Nacional/Torre do Tombo
Código de Referência: PT/TT/PIDE/E/010/106/21194
Link: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4301731

Outros testemunhos